A dor da lucidez
- Prof. Acúrcio Domingos
- 28 de fev. de 2022
- 2 min de leitura
Na ressaca do dia de ontem, depois de uma noite bem dormida na planura, regresso à escrita, lançando mão de uma frase paradoxal, sobretudo nos tempos que vivemos.
Que alcance poderá ter uma provocação destas, quando, à nossa volta, desde que se esteja minimamente atento, há horror que cega?
As sociedades pós-modernas e ultraliberais encheram-nos de mimos, ou cafeinaram-nos o suficiente, para não desejarmos dor ou sofrimento próprios ou da vizinhança mais próxima. Em simultâneo, habituaram-no, mesmo nos lugares de reflexão como a escola, ou que deviam sê-lo, para uma apatia que facilita o que posteriormente coletivamente lamentamos.
De certa forma, parecemos marionetas inertes, manipuladas por quem tem arte e destreza de mãos e nenhuns escrúpulos de consciência, para, de modo vagaroso nos ir silenciando as consciências. Entalados entre pacotes de entretenimento ou de indecente grosseria, para não dizer pior, ficamos reféns de sharings, que nos sinalizam o que vale a pena ser visto ou lido, sem escolha ou critério. Há dois dias, quando a Isabel Nascimento me contagiou com o incómodo da loucura que estava a acontecer na Ucrânia e que merecia uma posição da nossa comunidade escolar, veio-me à lembrança uma peça de teatro de G. Marcel, “Mundo danificado”, onde, a páginas tantas, se diz e transcrevo” às vezes não tens a impressão de que vivemos, se a isto se pode chamar viver,…num mundo danificado?....O mundo dos homens, percebes, deve ter tido um coração, mas dir-se-ia que esse coração deixou de bater”. De alguma forma, sem coração, não somos mais do que peças de ferro velho, sem som humano, meros resíduos de metais que colidem e se contorcem. Ainda bem que ontem quisemos e conseguimos reanimar a comunidade escolar para os níveis humanos que sentem e partilham a dor dos outros como sua, porque também o é. Pode ser que tenhamos iniciado um novo paradigma, depois de tantos avisos à civilização, ou ao que resta dela, em termos de relações humanas, despertando-nos para o que verdadeiramente pode desencadear uma revolução à altura dos desafios que vivemos. Os velhos pilares da civilização ocidental parecem já não aguentar as formas de nos entendermos na casa comum que habitamos. Precisamos de nos desligar desse tic-tac sem sentido e saltar para a dorida lucidez de sermos protagonistas do nosso tempo. Terá sido isso que ontem tentámos iniciar? Gostava de pensar que sim!
Vila Viçosa, 26-2-22
Texto: Acúrcio Domingos

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