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  • Matilde Silva

"As Nuvens de Hamburgo", de Pedro Cipriano

Atualizado: 7 de jul. de 2021


O primeiro livro que li integralmente é uma obra na qual se cruzam duas linhas temporais para dar ao leitor uma lição de justiça simultaneamente atual e intemporal. As Nuvens de Hamburgo, de Pedro Cipriano, foi uma leitura leve e fluída, que me permitiu quebrar o bloqueio em que me encontrava.

Nela, a viagem começa com uma visão a partir da janela de uma residência estudantil. Trata-se de uma cruz suástica pendurada num edifício de uma praça. Marta, uma estudante de História em Erasmus, encontra-se em Hamburgo, numa tentativa de escapar à sua família demasiado protetora e à monotonia do seu país. Nesta fuga à sua realidade, a adolescente acaba por se perder numa outra época: a do mais trágico acontecimento histórico ocorrido na Alemanha - o Holocausto. Na sequência desta visão, a jovem quase é morta por um soldado das SS, polícia política nazi. O que parecia ter sido um episódio isolado começa a acontecer com bastante frequência e os encontros com o soldado que a quisera matar sucedem-se, à medida que este se apercebe de que ela não pertence ali. Numa nova visão, que, desta vez, remete para o final da guerra, confronta-se novamente com o mesmo soldado e percebe que ele não foi preso. Decide então investigá-lo no presente e confirma tratar-se de alguém que, após a guerra, assumiu uma nova identidade – Dirk Raeder, tendo escapado impune à justiça dos tribunais. Numa última visita antes das aulas começarem, o seu grupo de amigos escolheu ir a um campo de concentração, onde Marta se vê presa, é espancada e acusada de ser uma espia. A visão durava já por mais de um dia e ela temia já não conseguir voltar à sua realidade, até que foi inquirida pelo, agora tenente, Dirk Raeder e lhe conta que vem do presente e que é por isso que, ao longo dos encontros, permanece sempre igual. É espancada novamente por negar ser uma espia e acorda no presente, chocando com um velho que visita o campo com a sua família. Reconhece-o e pronuncia o seu nome verdadeiro - Heinreich Raeder -, desmascarando-o perante a família e, mais tarde, a sociedade e o tribunal, acabando por conseguir que este seja preso. Confiante de que era ele o seu elo de ligação ao passado, acredita que as visões finalmente terminaram. Porém, ao sair do tribunal onde testemunhou contra o ex-SS, depressa se desengana ao confrontar-se com uma nova visão, desta vez, do que, pela descrição, parece tratar-se da manifestação de 4 de novembro de 1989, que deu origem à queda do muro de Berlim.

Sente-se ao longo de toda a obra uma grande fluidez de discurso por parte do autor, um dos grandes entusiastas da ficção especulativa e fantástica em Portugal, o que julgo dever-se ao facto de ter vivido e trabalhado enquanto cientista na dita cidade alemã, conhecendo bem de perto os locais e as pessoas, o que confere à obra uma proximidade e um realismo que, de outra forma, não teria. Apesar das várias analepses que caracterizam esta tão complexa narrativa – contrastando com o seu reduzido tamanho – e que se constituem como as viagens ao Holocausto, se tornarem um tanto confusas – a única crítica que tenho a fazer -, o enredo é bastante cativante. A isto acresce o facto de não ter muitas personagens, o que deu espaço para o autor explorar com bastante detalhe as poucas à volta das quais a história se desenvolve. Por outro lado, as pequenas revelações feitas através das descobertas de Marta em relação ao passado do tal soldado vão construindo a conclusão do romance. Ainda assim, apesar das pistas, revelou-se um final bastante inesperado e acredito que esse é um dos fatores que diferenciam uma obra boa de uma obra surpreendentemente boa. Por fim, é a última referência à queda do muro de Berlim, anos depois da Segunda Guerra Mundial, que faz desta uma obra de génio. “Caminhar pelas ruas de uma cidade não se limita a uma visita aos espaços urbanos, há sempre uma sobreposição da memória histórica, (…) em que o presente próspero coexiste com os traumas do passado”, li numa crítica ao livro.

Concluo, avaliando a obra com 4 em 5, recomendando a sua leitura e reiterando a ideia de que este livro se lê quase como se de um thriller se tratasse e consiste numa harmoniosa combinação entre história e ficção, facto e fantasia, passado e presente, todos unidos pelo mistério de uma belíssima escrita.


Texto: Matilde Silva

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