top of page
  • Bernardo Reis

Paredes Brancas

Atualizado: 7 de jul. de 2021

Este artigo é um relato, na primeira pessoa, de um acontecimento bastante desagradável ocorrido no dia 30 de outubro, acontecimento esse completamente injustificável e vazio de qualquer sentido ou nexo.

No dia referido acima, pelas 8h40 da manhã, dirigi-me, como habitualmente para a escola, acompanhado de um colega meu de cor de pele negra. Ao chegarmos ao portão, nas fachadas dos muros que constituem a entrada da escola, encontrámos escritas a tinta azul várias mensagens de ódio, racismo e xenofobia, nomeadamente “A Europa é Branca”, “Morte aos Pretos!”, “Viva os Portugueses Nativos, Morte aos Invasores por um Portugal Branco”.

Essas mensagens encontravam-se ladeadas por alguns símbolos desenhados e que são globalmente identificados e reconhecidos como “a imagem de marca” de alguns grupos que defendem e têm ideias racistas e xenófobas. Todas estas expressões inserem-se numa ideologia que eu repudio e que é intolerável nos dias de hoje e em pleno século XXI.

Deparados com esta situação lastimável, eu e o meu colega, inicialmente, ficámos estáticos, sem qualquer tipo de reação, perplexos…

Num momento subsequente, e como já tinham acontecido episódios deste género, quer seja na escola quer seja na nossa vida pessoal, o meu colega teve uma reação, que no presente acaba por ser recorrente e o espelho das pessoas que, infelizmente, têm de enfrentar todos os dias problemas como racismo e xenofobia, que foi olhar para o chão e continuar a andar. De facto, a vida segue mas a dor e a mágoa permanecem, bem como os pensamentos negativos, a tristeza de serem julgados quase diariamente pela simples cor da pele ou pelo dialeto que falam porque vieram para outro país tentar a sorte de arranjar um trabalho para ter uma condição de vida superior para si próprios ou muitas vezes para as suas famílias.

Seguimos em frente e ambos fomos para salas distintas porque somos de turmas diferentes, mas lembro-me ainda que, durante o caminho que percorremos juntos, não proferimos qualquer palavra, pois ambos sentimos o mesmo, embora de maneiras diferentes, mas a revolta foi igual.

Cheguei à minha sala de aula onde se encontravam a minha Diretora de Turma e um colega e ambos estavam já a par da situação, porque ambos também tinham passado pelos portões da escola. Sentei-me na cadeira, calado, com o rosto visivelmente revoltado e comecei a fazer uma introspeção de tudo o que tinha acabado de acontecer, viver e experienciar, e tentei colocar-me nos pés dos milhares de milhões de pessoas que diariamente passam por situações idênticas de racismo e xenofobia; tentei colocar-me no lugar dos meus colegas de turma de cor de pele negra, que falam outros dialetos, que vêm de outros países como Brasil, Guiné-Bissau…; dos meus colegas de escola, das auxiliares, dos professores e sobretudo dos meus amigos. Começou-se a gerar uma grande revolta, uma grande indignação dentro de mim.

De imediato, comentei com o meu colega e com a minha professora a minha revolta para com o sucedido e eles começaram a conversar sobre o assunto, a dar a sua opinião e a debater a temática, mas eu rapidamente deixei de ouvir os comentários, como se tivesse sido transportado para um universo paralelo onde só me situava eu e os meus pensamentos e sentimentos de raiva e ódio para com a situação. Rapidamente decidi dentro de mim que tinha de tomar uma atitude para com aquilo que se estava a passar! Não podia deixar passar aquela situação como “mais uma” que simplesmente fosse passar impune, sem ninguém fizesse algo nem tomasse uma atitude diferente.

Então, quase como que “por impulso”, disse à minha professora que não conseguia ficar ali sentado na sala de aula com aquelas mensagens de ódio, racismo e xenofobia escritas nas paredes da minha escola, porque senti dentro de mim uma grande tristeza, uma dor imensa para com os meus colegas e para com todas as pessoas que sofrem desta atrocidade todos os dias.

Informei a minha professora de que iria ter de sair da sala, que não conseguiria concentrar-me em nada, porque aquele assunto não me saía da cabeça, já que eu acabara de vivenciar uma das piores experiências pela qual um ser humano pode passar, que é a discriminação pela cor da sua pele ou por falar outro dialeto, o que, para mim, é ridículo! Como tal, estava por mim decidido que não podia nem iria ficar sem fazer nada. A professora informou-me que, perante a lei, teria de ter sido marcada falta, o que eu compreendi, mas que louvava a minha atitude e que era bastante digna.

Vendo a atitude que eu acabara de tomar e igualmente revoltado com a situação, o meu colega acompanhou-me. Dirigimo-nos à auxiliar da escola perguntando-lhe se ela tinha algum tipo de tintas ou algo que pudéssemos usar para cobrir aquelas mensagens. Um pouco enervada também com a situação não manifestou uma grande abertura e a única solução indicada para tentarmos resolver o problema foi a de expormos o caso à Direção, o que fizemos de imediato.

Chegados à Direção, rapidamente nos apercebemos de que a escola já se estava a mobilizar, como costuma, para ir apagar as ditas mensagens - então eu e o meu colega mostrámos logo iniciativa e interesse em ir com os auxiliares lixar e pintar as paredes. Satisfeitos com a nossa atitude e partilhando da mesma revolta para com a situação foi aceite pela Direção a nossa participação em tal atividade.

Assim, eu, o meu colega e dois auxiliares da escola pegámos nas lixas, nas tintas e nos pincéis e assim fomos para a porta da escola remover algo que não deveria estar lá, retirámos os nossos pertences e deitámos mãos à obra.

Começámos a lixar a tinta azul da parede, e lembro-me de lixar e de ficar com os dedos em sangue de tanta força fazer na lixa. Fiquei com os dedos em ferida, e ainda hoje estão enquanto escrevo este artigo, mas foi pela melhor das causas. Rapidamente, os outros alunos começaram a aperceber-se da nossa atitude e ficaram a apreciar-nos, até que um teve uma atitude nobre: sem que ninguém lhe pedisse nada, perguntou em que podia ajudar, e eu, louvando a sua atitude, limitei-me a esticar-lhe uma lixa e assim continuámos todos juntos a eliminar a tinta azul e, quando dei por mim, éramos mais de dois, de quatro, de seis, e todos juntos por um movimento de alunos e auxiliares!

Começámos a pintar e dei por mim rodeado pelas pessoas certas, com direitos e valores corretos e foi então que, já com alguns professores presentes, proferi a afirmação que também deu destaque a tudo isto: “sem apagar isto daqui, recuso-me a entrar”. Então assim foi e começámos a pintar, eu e o meu colega que esteve sempre junto a mim, do princípio ao fim. Digo isto porque os nossos outros colegas, que nos deram uma ajuda louvável, tiveram de seguir as suas vidas e ir para as aulas. Mas nós os dois não, mantivemo-nos ali até ao fim!

Demos a primeira demão, esperámos que secasse, ao que se seguiu a segunda, e esperámos que secasse, e continuámos para a terceira, quarta, quinta… E ali ficámos até que aquelas palavras saíssem dali, custasse o que custasse, levasse o tempo que levasse!

Ao fim de umas horas, soubemos que outras instituições tinham sido alvo destas mensagens de ódio, racismo e xenofobia, como infelizmente já aconteceu antes. Isto nunca costuma ser um ato isolado, portanto, tivemos um sentimento agridoce: estávamos felizes por termos apagado aquilo da nossa escola, mas tristes e revoltados pelas outras. Porque nós naquele momento não poderíamos fazer nada como fizemos pela nossa escola. Nada poderia ser feito a não ser que as pessoas que a elas pertencem tivessem tido uma atitude nobre de bater o pé e dizer "Chega! Aqui dizemos NÃO ao racismo e à xenofobia. E somos contra qualquer tipo de ato de ódio que envolva estes preconceitos."

Por fim, dirigimo-nos à nossa última aula do dia, completamente sujos de tinta, mas por um bom motivo, por uma boa causa, pela justiça e igualdade para todos. Essa aula coincidia com um teste e “tecnicamente” a nossa vida seguiu, embora saibamos que não é bem assim….

Passados todos estes dias, a memória e os sentimentos da manhã de dia 30 de outubro de 2020 ainda persistem bastante vivas na minha memória, tudo o que senti, vivi e experienciei desde que cheguei à escola até ao momento em que voltei a ver as paredes brancas de novo.

É preciso ser uma pessoa sem escrúpulos, sem sentimentos de humanidade, e claramente digna de condenação, para exteriorizar sentimentos racistas ou xenófobos e, infelizmente, nem vou pensar que os possa pôr em prática e assumi-los publicamente com orgulho…

Mas, como sei que o mundo não é cor-de-rosa e existem por aí muitas pessoas maldosas, só tenho a dizer a essas pessoas que saiam deste mundo pois não existe espaço para elas na nossa sociedade.

Ainda, e agora para todos os que realmente importam, para as pessoas que passam por situações iguais ou idênticas a esta diariamente, fica aqui a minha mensagem:

FORÇA! VOCÊS NÃO ESTÃO SOZINHOS, ESTAMOS TODOS JUNTOS NESTA LUTA!




Autor: Bernardo Reis

Revisão: Beatriz Ferrão, Dinis Marques, Ana Paula Ribeiro

33 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page